sábado, 25 de agosto de 2012

#Conto: Bolo


Comecei esse conto em uma aula de química logo após de ter uma aula sobre Clarice Lispector, já podem imaginar que o resultado não foi lá essas coisas, certo?
Bom, aqui está.

O sol cega sua inferioridade. Reclusa em um banco de concreto quente está Ana, mastigando silenciosamente um pedaço de bolo. Os farelos parecem cair de sua alma, doce e enjoativa. Ela olha em volta. Não há nada que lhe desperte a atenção, há somente a futilidade alheia, a malícia escondida em cada gesto humano, por mais ínfimo que seja: Um abraço de um casal, ela fecha os olhos, ele revira os olhos. Uma senhora tropeça na calçada, um garoto abafa a risada com a mão. Um cliente ofende o garçom por trazer-lhe a comida fria, e cospe-lhe no sapato preto.
Nada presta, afinal. Mais uma mordida. Uma fuga do desinteresse.
Um súbito prazer invade os olhos de Ana: uma mosca pousa ao seu lado, parece observá-la com seus olhos verdes e saltados, imagem um tanto grotesca. O bolo dissolve na boca de Ana e a mosca é esmagada por um polegar. Um sorriso e mais uma mordida.
O casal se separa, ela pega um ônibus e ele liga para alguém, sussurra docemente ao telefone, palavras de amante. Tropeça em algo, uma perna, um pé? Não sabe, foi rápido demais, cai no chão e quebra seu nariz, sente o sangue escorrendo e corre à procura de socorro.
Um sorriso, mais uma mordida.
O sol fica mais alto, é em torno do meio-dia. Está no horário de almoço do menino que, após rir da senhora que tropeçou, ainda pegou suas moedas que caíram na calçada. Contente com o seu tesouro roubado, ele está a caminho de casa. Um pequeno pirata. Um pirata mau. Algo lhe atinge a cabeça, um pedregulho? Não sabe, foi rápido demais. Sua cabeça jorra sangue de pirata. Assustado, ele chama por sua mãe. Onde já se viu? Um pirata correndo para a mamãe?
Um sorriso, mais uma mordida.
O bolo está acabando, assim como o almoço do homem que ofendeu o garçom. Antes de ir embora ele chama o mesmo garçom, usa palavras chulas, o ofende mais uma vez e, não satisfeito, lhe chuta na barriga, o garçom se afasta humilhado e assustado. Antes que o homem pudesse proferir mais alguma ofensa foi atingido por um tiro, na barriga. Percebe-se o acontecido e todos começam a correr assustados, sem rumo, com medo de uma bala perdida. O corpo do homem permanece inerte, ensaguentado.
Ana caminha até ele e nota que na mesa está uma xícara de café, ainda quente, e como acompanhamento, um pequeno pedaço de bolo.
Um sorriso e mais uma mordida.

#fui